a paulo valente
sou o avesso disso que se me posta aos olhos
ante o espelho.
sou o que passa.
a imagem, o que fica.
sou o que fui, o sendo e o que serei.
sou o que não sei.
o que flutua errante no mar bravio que escondo em mim.
esse que vês é outro, é estorvo,
é náusea,
é a sombra que me persegue em vão e te confundes.
mas não te iludas, ou te iludas
se assim te apetece,
só não ouses enclausurar-me em ti demasiadamente.
já bastam as minhas cadeias.
já bastam as cordas que, sorrateiras,
seduzem-me para enlaçar-me ao alto.
já basta o murmúrio rouco
que me tenta, me contenta, me maltrata.
já basta.
não me mato, sei, pois morrer também me cansa
já que se morre indefinidamente
e tudo que se segue indefinido é um cansaço.
é no avesso do compasso que oiço a melodia que não toca.
sou o mistério escondido no contrário.
sou o ruído, o improviso,
sou improvável.
é quando passo de largo à rua e vejo, alheio, os que se vão
que me sinto lúcido deveras.
ali, só ali, sei que aonde ir não há.
eis tudo o que temos: o ir,
jamais chegar.
ah!, coração-infante, não te apequenes tanto.
Não te avexes!
eis a vida, eis tudo: o nada.
tanto esta angústia que te engole
quanto o trago que rejeitas,
tanto o vento, os reis, o afago, a sarjeta
quanto aquele que dividiu o tempo em antes e depois de si...
– vê! – está tudo posto no mesmo bojo:
tudo é nada.
tudo é poeira.
tudo é maçada.
*Imagem: Estudio académico (1895), de Pablo Picasso.