sexta-feira, 11 de novembro de 2016

o livro dos dias


olho os meus dias como quem
olha solenemente os carros negros que se
seguem ao ataúde solitário
o solitário absoluto
a solidão em si
plena
sem máscaras

olho os meus dias como quem
olha a pista suja e triste
depois que o bloco passa
e escuta os tamborins silenciados
o silêncio
quando já não há fantasias
nem máscaras

olho os meus dias como quem 
não vê
olho a sombra, a penumbra, a escada
vazia
o livro fechado e
não lido
a louça suja do que
não foi comido
o sol que se pôs sem nascer

olho os meus dias 
- essa eterna noite chamada vida -
mas nada enxergo
por quê?



* Imagem: Head and bottle (1975), de Philip Guston.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Hacai #9 - V


da noite, um sussurro:
muitos vivos, poucos vivem.
sono breve, leve, surdo.

* Imagem: P. 726 (1977), de Gottfried Honegger.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

soul


não morro de amores
nem vivo
sou inconstância, incerteza
calafrio
não choro de dores
nem rio
sou a dureza da leveza
desvario

* Imagem: Desarrollo del triángulo (1951), de Tomas Maldonado.

domingo, 24 de abril de 2016

Poeminha às 5


a Luiz

que agonia!
tem amor 
mas não tem beijo
só poesia


* Imagem: People (1982), de Leon Ferrari.



quarta-feira, 9 de março de 2016

Deus absconditus


e depois de um dia tépido
e de me demorar em
decidir
se sou feliz aqui ou outrora,
caminho à rua de minha casa,
estafado...
as janelas do cortiço escancaradas
e as vidas que ali se revelam e passam vulgarmente
me são a epifania que faltava.
giro a chave, 
abro a porta como quem dobra os joelhos ante o mistério 
e meus os olhos marejados me fazem sentir placidamente
o bafo quente e aprisionado escorrer do meu quarto solitário, me devorando:
sim, sou feliz.


* Imagem: Skeletons trying to warm themselves (1889), de James Ensor.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Sonhos de 33


viver em um mundo
sem nenhum protagonismo
entrar e sair
sem nunca ser percebido
morar num quarto qualquer
com livro, cerveja e libido
e acordar de manhã
com tudo o mais esquecido

só para deixar essa vida
como quem foi sem ter sido

* Imagem: Le poete recompense (1956), de René Magritte.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Banal


ser como um rio que grave
e alheio passa
é saber-se vão e triste
é saber-se nada.
é sentir-se o oposto,
o outro. é ser o inverso,
suave página virada.

mas tu, quimera risível
que te finges estática e vestes, torpe, a vileza banal da eternidade,
não passas de um cansaço 
de horas, 
de olhos,
de uma retilínea estrada infinda, pura, sem contornos, 
imaculada.
estrada virgem, sem paixão, 
desvio, estorvo ou dor ou graça.
homem-podridão
homem-pó
homem-imensidão
homem
só.


* Imagem: Original sin (1941), de Salvador Dalí.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A árvore


na esquina de minha rua
tem uma árvore que ignoro a espécie.
tão velha,
firme e
serena
que me embota a vista
e não sei bem o porquê.
dou de ombros 
sempre que passo por ela — 
talvez me seja um estorvo
envelhecer assim sem dar por isso.

tal qual a árvore que ignoro a espécie, sou velho.

velho, claro, só na alma 
e nos cabelos a branquear precocemente.
no entanto, nunca soube o que é permanecer
assim
nem jamais me coube aos ombros
essa suavidade ignorada de dias.

quando cai a noite,

a árvore dali da esquina 
tem estado bem iluminada pelas luzes da cidade.
aqui, entretanto, outro engodo:
ela não se percebe sob as luzes
e nem dá conta da beleza do verde robusto de suas folhas parcas.

sei, contudo, que também sou assim:

iluminado, sem saber pelo que, e
belo, sem perceber.
também estou anoitecido em mim
mas aqui uma diferença: da noite de meus dias eu sei.

a árvore da esquina de minha rua

e da qual ignoro a espécie
não me sorri deveras
tampouco eu dedico a ela uma simpatia qualquer.
somos alheios um ao outro
e nisso, talvez, mais um contato:
velhos,
ignoramos aquilo que vai ao nosso lado.

mas

ela permanece,
eu passo.
ela, serena.
eu, estardalhaço.


* Imagem: The moonlight bed (2002), de Jacek Yerka.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Incongruente


o vento que embala
doce o voo do passarinho
é o mesmo que, amargurado,
abala o galho, derruba o ninho.

o sol que banha a rosa
também aquece o espinho

e eu que amo a vida,
o seu calor, seu burburinho,
também me aconchego na morte,
na solidão, na dor, no frio.

* Imagem: Two women on the shore (1898), de Edvard Munch.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Autofagia


essa velhice que carrego no fundo dos meus olhos comuns e cansados
não me cega
não me nega
não me mata

pena


mas já não oiço as batidas insistentes em minha porta

e nem atendo ligações de números que desconheço 
(ou que simplesmente finjo desconhecer)
e já não danço quando tocam os sambas de outrora
e já não rio 

sequer choro

ah, mas este riso que lanço aos desavisados

este não é o riso de que falo
este não é riso 
é casca
uma casca tépida que visto sobre minha carne em brasa

isto é o que tenho aos transeuntes dessa cidade fria e imensa que alguns insistem em chamar "amigos"

aos outros, àqueles que passam de largo
e fingem me ver 
e acenam sem nem bem saber o porquê
a estes 
um olhar sereno e distante basta
só para evitar o descompasso  

na verdade, o que sinto é que não vivo deveras 
acho que duro
simplesmente duro

e
se isso é o que me resta
que seja

sinto, sim, mas não sinto muito

desses meus dias de solidão
carrego docemente os livros, as dores, os discos velhos 
os novos beijos

e a desesperança
que, de tudo que colhi e descartei 
é ainda o que me faz marejar os olhos
é ainda o que me traz a beleza da certeza

de que certezas não há
  
* Imagem: Las dos Fridas (1939), de Frida Kahlo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Sem título


vida com muita pressa
                                       dispersa
vida de muita pressão

não faz bem ao coração

vida-expressa
       depressa
       depressão

* Imagem: Riding with Death (1988), de Jean-Michel Basquiat.