quarta-feira, 29 de abril de 2015

de profundis


a paulo valente

sou o avesso disso que se me posta aos olhos
ante o espelho.
sou o que passa.
a imagem, o que fica.

sou o que fui, o sendo e o que serei.
sou o que não sei.
o que flutua errante no mar bravio que escondo em mim.
esse que vês é outro, é estorvo,
é náusea,
é a sombra que me persegue em vão e te confundes.

mas não te iludas, ou te iludas 
se assim te apetece,
só não ouses enclausurar-me em ti demasiadamente.

já bastam as minhas cadeias.
já bastam as cordas que, sorrateiras,
seduzem-me para enlaçar-me ao alto.
já basta o murmúrio rouco
que me tenta, me contenta, me maltrata.

já basta.

não me mato, sei, pois morrer também me cansa
já que se morre indefinidamente
e tudo que se segue indefinido é um cansaço.

é no avesso do compasso que oiço a melodia que não toca.
sou o mistério escondido no contrário.
sou o ruído, o improviso,

sou improvável.

é quando passo de largo à rua e vejo, alheio, os que se vão
que me sinto lúcido deveras.
ali, só ali, sei que aonde ir não há.
eis tudo o que temos: o ir,
jamais chegar.

ah!, coração-infante, não te apequenes tanto.
Não te avexes!
eis a vida, eis tudo: o nada.

tanto esta angústia que te engole
quanto o trago que rejeitas,

tanto o vento, os reis, o afago, a sarjeta
quanto aquele que dividiu o tempo em antes e depois de si...

–  vê! –  está tudo posto no mesmo bojo:

tudo é nada.
tudo é poeira.
tudo é maçada.

*Imagem: Estudio académico (1895), de Pablo Picasso.

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