essa velhice que carrego no fundo dos meus olhos comuns e cansados
não me cega
não me nega
não me mata
pena
mas já não oiço as batidas insistentes em minha porta
e nem atendo ligações de números que desconheço
(ou que simplesmente finjo desconhecer)
e já não danço quando tocam os sambas de outrora
e já não rio
sequer choro
ah, mas este riso que lanço aos desavisados
este não é o riso de que falo
este não é riso
é casca
uma casca tépida que visto sobre minha carne em brasa
isto é o que tenho aos transeuntes dessa cidade fria e imensa que alguns insistem em chamar "amigos"
aos outros, àqueles que passam de largo
e fingem me ver
e acenam sem nem bem saber o porquê
a estes
um olhar sereno e distante basta
só para evitar o descompasso
na verdade, o que sinto é que não vivo deveras
acho que duro
simplesmente duro
e
se isso é o que me resta
que seja
sinto, sim, mas não sinto muito
desses meus dias de solidão
carrego docemente os livros, as dores, os discos velhos
os novos beijos
e a desesperança
que, de tudo que colhi e descartei
é ainda o que me faz marejar os olhos
é ainda o que me traz a beleza da certeza
de que certezas não há
* Imagem: Las dos Fridas (1939), de Frida Kahlo.