quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Autofagia


essa velhice que carrego no fundo dos meus olhos comuns e cansados
não me cega
não me nega
não me mata

pena


mas já não oiço as batidas insistentes em minha porta

e nem atendo ligações de números que desconheço 
(ou que simplesmente finjo desconhecer)
e já não danço quando tocam os sambas de outrora
e já não rio 

sequer choro

ah, mas este riso que lanço aos desavisados

este não é o riso de que falo
este não é riso 
é casca
uma casca tépida que visto sobre minha carne em brasa

isto é o que tenho aos transeuntes dessa cidade fria e imensa que alguns insistem em chamar "amigos"

aos outros, àqueles que passam de largo
e fingem me ver 
e acenam sem nem bem saber o porquê
a estes 
um olhar sereno e distante basta
só para evitar o descompasso  

na verdade, o que sinto é que não vivo deveras 
acho que duro
simplesmente duro

e
se isso é o que me resta
que seja

sinto, sim, mas não sinto muito

desses meus dias de solidão
carrego docemente os livros, as dores, os discos velhos 
os novos beijos

e a desesperança
que, de tudo que colhi e descartei 
é ainda o que me faz marejar os olhos
é ainda o que me traz a beleza da certeza

de que certezas não há
  
* Imagem: Las dos Fridas (1939), de Frida Kahlo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Sem título


vida com muita pressa
                                       dispersa
vida de muita pressão

não faz bem ao coração

vida-expressa
       depressa
       depressão

* Imagem: Riding with Death (1988), de Jean-Michel Basquiat.