domingo, 14 de fevereiro de 2016

Sonhos de 33


viver em um mundo
sem nenhum protagonismo
entrar e sair
sem nunca ser percebido
morar num quarto qualquer
com livro, cerveja e libido
e acordar de manhã
com tudo o mais esquecido

só para deixar essa vida
como quem foi sem ter sido

* Imagem: Le poete recompense (1956), de René Magritte.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Banal


ser como um rio que grave
e alheio passa
é saber-se vão e triste
é saber-se nada.
é sentir-se o oposto,
o outro. é ser o inverso,
suave página virada.

mas tu, quimera risível
que te finges estática e vestes, torpe, a vileza banal da eternidade,
não passas de um cansaço 
de horas, 
de olhos,
de uma retilínea estrada infinda, pura, sem contornos, 
imaculada.
estrada virgem, sem paixão, 
desvio, estorvo ou dor ou graça.
homem-podridão
homem-pó
homem-imensidão
homem
só.


* Imagem: Original sin (1941), de Salvador Dalí.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A árvore


na esquina de minha rua
tem uma árvore que ignoro a espécie.
tão velha,
firme e
serena
que me embota a vista
e não sei bem o porquê.
dou de ombros 
sempre que passo por ela — 
talvez me seja um estorvo
envelhecer assim sem dar por isso.

tal qual a árvore que ignoro a espécie, sou velho.

velho, claro, só na alma 
e nos cabelos a branquear precocemente.
no entanto, nunca soube o que é permanecer
assim
nem jamais me coube aos ombros
essa suavidade ignorada de dias.

quando cai a noite,

a árvore dali da esquina 
tem estado bem iluminada pelas luzes da cidade.
aqui, entretanto, outro engodo:
ela não se percebe sob as luzes
e nem dá conta da beleza do verde robusto de suas folhas parcas.

sei, contudo, que também sou assim:

iluminado, sem saber pelo que, e
belo, sem perceber.
também estou anoitecido em mim
mas aqui uma diferença: da noite de meus dias eu sei.

a árvore da esquina de minha rua

e da qual ignoro a espécie
não me sorri deveras
tampouco eu dedico a ela uma simpatia qualquer.
somos alheios um ao outro
e nisso, talvez, mais um contato:
velhos,
ignoramos aquilo que vai ao nosso lado.

mas

ela permanece,
eu passo.
ela, serena.
eu, estardalhaço.


* Imagem: The moonlight bed (2002), de Jacek Yerka.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Incongruente


o vento que embala
doce o voo do passarinho
é o mesmo que, amargurado,
abala o galho, derruba o ninho.

o sol que banha a rosa
também aquece o espinho

e eu que amo a vida,
o seu calor, seu burburinho,
também me aconchego na morte,
na solidão, na dor, no frio.

* Imagem: Two women on the shore (1898), de Edvard Munch.