terça-feira, 5 de julho de 2011

O último



Meus olhos cerraram-se também
Quando ouvi o bater grave
Das grandes portas por trás de mim.
Ao longe, do fundo da casa arruinada e serena,
Ainda pude distinguir o cantar rouco,
Sujo, do galo aleijado, cria do sacristão ateu.
Não pude conter o sorriso triste
Que escorreu pelos lados de minha boca exangue
Pois minha vida sempre fora este cerrar constante
De portas, de sonhos, de pernas...

Ah destino vil! Cansa-te de mim!
Já não posso com esse cair de estrelas sobre minhas costas!
Tão quentes
Tão quentes
Secando minhas lágrimas raras,
Filhas de meu coração rude e fraco.

[...]

As portas cerraram-se.
Meus olhos e coração também.
Pego a navalha com as mãos trêmulas e ela me beija docemente
Sem pudor algum, sem pressa...
Levá-la-ei comigo até o barqueiro
Assim mesmo, manchada de meu escarlate.
Será o último amor a quem me entreguei...
Na beira do rio será enterrada e partirei sozinho, enfim.

[...]

O sono derradeiro me embala sofregamente
E em meio ao pavoroso cansaço
A sombra suprema sussurra suavemente:  
- Não há liberdade maior do que aquela de quem já não
[tem escolha.

Nada mais valeria a pena.
Nada mais valeria.
Nada mais.
Nada.

* Imagem: Milton, Paradise Lost, Satan Falls (1866), Gustave Doré.
  

terça-feira, 21 de junho de 2011

Parede da memória, quadro #3



[Desejo] 
a Florbela Espanca

O som dos passos calmos, decadentes,
Tilintam em meus olhos cor de fogo
E vou soturno, ralo, entre as gentes
Sentindo o peso pardo do teu jogo.

Quem dera ter-te em minhas mãos insones
Nem que fosse por um momento apenas...
Só de pensar meu ser já me condena!
Só de te ver meu corpo me consome!

Não vou dormir, ó purulenta noite,
Nem me entregar ao meu desejo infame!
Quero vestir m’as costas de açoites,

Cobrindo m’a vergonha de pudores!
Vou me esbaldar nas poças do meu sangue
’té que de mim tu te desabotoes... 



* Imagem: Nu féminin assis (1917), Amadeo Modigliani

quinta-feira, 16 de junho de 2011

NARGUILÉ




Uma fumaça branca se esvai

Pela noite de pequenos eternos

A imbricar-se em mil matizes

De rostos e sons e luz

Olhares, sombras

Desculpas, penumbras e Saudades...

São tragos,

Belos tragos,

Estragos numa mente que jaz.

Cambaleante,

Atordoado com meu Despudor em riste,

Busco manter-me de pé.

Em vão,

Já que a fumaça,

Perdida,

De tanto em mim,

Sou eu.

Deixo-me ir então.

Leve,

Levado,

Elevado,

Ignorado,

Sem rumo algum,

A todo lugar...

Até que me dissipe por Completo

Em ti, vida agora minha,

E no ar puro

Que nunca fui.


* Imagem: La victoire (1938), de René Magritte.


terça-feira, 14 de junho de 2011

OPVS HOMINI



Minha alma
É um claustro
Sem deus
Sem hábito
Mas o cilício,
Esse maldito cão raivoso,
Não me quer largar.


* Imagem: Philosopher reading (1631), de Rembrandt Harmenszoon van Rijn



segunda-feira, 13 de junho de 2011

14.2.11



Sete palmos
Sete palmos apenas
Separam-me do meu destino eterno...
Ah! quem dera
Essa curiosidade insana
Viesse a ser saciada agora
Inteira!
Mas não.
Tenho que esperar,
Dizem-me.
O pecado de apressar
O fim que tanto anseio
Aperta, sufoca, me mata!
Já não suporto
Essa morte à conta-gotas
Que tanto maltrata...
Morro todos os dias
Não veem?
Um pouco de mim se esvai
Sempre
Por entre meus dedos engelhados
Com o xampu barato
Que comprei na minha morte
Diária de outro dia...
Mas não.
Eles não percebem
Acham que vivo vivendo
Dia após dia...
Bah!
Que sandice!
Aos urros tenho dormido
Dentro de mim todos os dias
Fecho os olhos
Quando acordo
E sonhando vou trabalhar
Não sem antes,
Claro,
Entregar o beijo doce,
Reticente,
Na amada nua
Que, acordada,
Dorme ao meu lado

[...]

Ah! destino perene,
Vem encontrar-me
Na próxima esquina
Sob a pesada chuva!
E me desperta,
Rogo-te,
Desse pesadelo insone
Que me aprisiona,
Hoje, já há vinte oito anos.



* Imagem: Saturno devorando a su hijo (1819-1823), de Francisco de Goya.


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Lassidão



...deus não existe, o diabo principalmente.



*Imagem: Adam - one blood, many nations, de Lewis Lavoie. 
Versão em mosaico de detalhe da obra A criação de Adão, de Michelangelo. 

aos mais curisosos: 

quinta-feira, 24 de março de 2011

Aos putos



Sempre que uns putos aqui de frente
Danam-se a falar de deus
E a cantar
E a chorar cantando,
Aos gritos,
Eu fico cá
Ressabiado, carrancudo e triste
Por ter de ouvi-los deveras
E, transtornado,
Surpreender-me pensando 
Nesse deus qualquer
E suas colunas de fogo
E seus anjos vingadores
E seus milagres mesquinhos,
Arbitrários

Argh! estou farto dessa nódoa cálida
Que surrupia a suavidade do meu dia
E embota palidamente meu sorriso cansado...
Envelheci precocemente, sei.
E as rugas que marcam 
Profundamente minha alma casmurra
São como fendas intransponíveis
Que me separam da eterna criança que fui
Quando nasci de novo
E agora, no ocaso de minha vida vã
Fecho os olhos e não choro
Deus se foi, não volta
Ficaram eu
Meus calos
Minhas dores
E a lembrança ôca
Daquelas belas estórias
E das verdades rôtas
Que me faziam suspirar
Esperando tropegamente 
Pelos tempos melhores de além.



*Imagem: "Le mal du pays" (1941), de René Magritte.

domingo, 6 de março de 2011

Woody Allen I





É, Albert, Deus não joga dados, mas brinca de esconde-esconde...




* Imagem: Moisés (1945), de Frida Kahlo.

 

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Dança



As folhas caem como lágrimas,
Protegem do frio que vem.
Vem com o vento,
Que as espalha
Mas as faz dançar também.
Minha alma é como o vento
Espalha lágrimas
Que caem
Dançando.




*Imagem: A árvore de amora (1889), de Vicent van Gogh.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Armando a rede...

É por uma necessidade quase que catártica que aqui venho vomitar crônicas, poesias, aforismos, palavras, imagens e silêncios que me chegam por meus demônios ou pelos demônios dos outros, com os quais me esbarro vez por outra.

Foi justamente conversando com um destes, um dos mais caros, diga-se, que lembrei do gênio de Rosa dizendo que o diabo estava “na rua, no meio do redemoinho”. Não sei se sou um diabo, ou, ao menos, espero que não seja apenas isso. Sei somente que estou na rua. E que é do meio do redemoinho que escrevo.