terça-feira, 5 de julho de 2011

O último



Meus olhos cerraram-se também
Quando ouvi o bater grave
Das grandes portas por trás de mim.
Ao longe, do fundo da casa arruinada e serena,
Ainda pude distinguir o cantar rouco,
Sujo, do galo aleijado, cria do sacristão ateu.
Não pude conter o sorriso triste
Que escorreu pelos lados de minha boca exangue
Pois minha vida sempre fora este cerrar constante
De portas, de sonhos, de pernas...

Ah destino vil! Cansa-te de mim!
Já não posso com esse cair de estrelas sobre minhas costas!
Tão quentes
Tão quentes
Secando minhas lágrimas raras,
Filhas de meu coração rude e fraco.

[...]

As portas cerraram-se.
Meus olhos e coração também.
Pego a navalha com as mãos trêmulas e ela me beija docemente
Sem pudor algum, sem pressa...
Levá-la-ei comigo até o barqueiro
Assim mesmo, manchada de meu escarlate.
Será o último amor a quem me entreguei...
Na beira do rio será enterrada e partirei sozinho, enfim.

[...]

O sono derradeiro me embala sofregamente
E em meio ao pavoroso cansaço
A sombra suprema sussurra suavemente:  
- Não há liberdade maior do que aquela de quem já não
[tem escolha.

Nada mais valeria a pena.
Nada mais valeria.
Nada mais.
Nada.

* Imagem: Milton, Paradise Lost, Satan Falls (1866), Gustave Doré.