terça-feira, 21 de junho de 2011

Parede da memória, quadro #3



[Desejo] 
a Florbela Espanca

O som dos passos calmos, decadentes,
Tilintam em meus olhos cor de fogo
E vou soturno, ralo, entre as gentes
Sentindo o peso pardo do teu jogo.

Quem dera ter-te em minhas mãos insones
Nem que fosse por um momento apenas...
Só de pensar meu ser já me condena!
Só de te ver meu corpo me consome!

Não vou dormir, ó purulenta noite,
Nem me entregar ao meu desejo infame!
Quero vestir m’as costas de açoites,

Cobrindo m’a vergonha de pudores!
Vou me esbaldar nas poças do meu sangue
’té que de mim tu te desabotoes... 



* Imagem: Nu féminin assis (1917), Amadeo Modigliani

quinta-feira, 16 de junho de 2011

NARGUILÉ




Uma fumaça branca se esvai

Pela noite de pequenos eternos

A imbricar-se em mil matizes

De rostos e sons e luz

Olhares, sombras

Desculpas, penumbras e Saudades...

São tragos,

Belos tragos,

Estragos numa mente que jaz.

Cambaleante,

Atordoado com meu Despudor em riste,

Busco manter-me de pé.

Em vão,

Já que a fumaça,

Perdida,

De tanto em mim,

Sou eu.

Deixo-me ir então.

Leve,

Levado,

Elevado,

Ignorado,

Sem rumo algum,

A todo lugar...

Até que me dissipe por Completo

Em ti, vida agora minha,

E no ar puro

Que nunca fui.


* Imagem: La victoire (1938), de René Magritte.


terça-feira, 14 de junho de 2011

OPVS HOMINI



Minha alma
É um claustro
Sem deus
Sem hábito
Mas o cilício,
Esse maldito cão raivoso,
Não me quer largar.


* Imagem: Philosopher reading (1631), de Rembrandt Harmenszoon van Rijn



segunda-feira, 13 de junho de 2011

14.2.11



Sete palmos
Sete palmos apenas
Separam-me do meu destino eterno...
Ah! quem dera
Essa curiosidade insana
Viesse a ser saciada agora
Inteira!
Mas não.
Tenho que esperar,
Dizem-me.
O pecado de apressar
O fim que tanto anseio
Aperta, sufoca, me mata!
Já não suporto
Essa morte à conta-gotas
Que tanto maltrata...
Morro todos os dias
Não veem?
Um pouco de mim se esvai
Sempre
Por entre meus dedos engelhados
Com o xampu barato
Que comprei na minha morte
Diária de outro dia...
Mas não.
Eles não percebem
Acham que vivo vivendo
Dia após dia...
Bah!
Que sandice!
Aos urros tenho dormido
Dentro de mim todos os dias
Fecho os olhos
Quando acordo
E sonhando vou trabalhar
Não sem antes,
Claro,
Entregar o beijo doce,
Reticente,
Na amada nua
Que, acordada,
Dorme ao meu lado

[...]

Ah! destino perene,
Vem encontrar-me
Na próxima esquina
Sob a pesada chuva!
E me desperta,
Rogo-te,
Desse pesadelo insone
Que me aprisiona,
Hoje, já há vinte oito anos.



* Imagem: Saturno devorando a su hijo (1819-1823), de Francisco de Goya.